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Luiz Gama e a Escravidão – Um olhar histórico do Brasil do século XIX

Sendo um período de acentuadas polaridades, o século XIX não deixaria de produzir, também, aquele que se tornaria um verdadeiro exemplo de altruísmo. Referimo-nos a Luiz Gama (1830-1882), que, nas palavras de Comparato (2012, p. 355), teria sido “o maior defensor de escravos que este país jamais conheceu”.

Seguramente não há contradição alguma em tais palavras ao falarmos sobre o ex-escravo que, após tornar-se autodidata em direito, passou a atuar como advogado, direcionando os esforços do seu trabalho, aos seus pares, aos pobres, afligidos e desamparados socialmente. Luiz Gama utilizou a sua liberdade e qualificação intelectual para o benefício alheio.

“Poeta, jornalista e advogado, Luiz Gama é um dos raros intelectuais negros brasileiros do século XIX, o único autodidata e o único, também, a ter vivido a experiência da escravidão antes de obter […] as provas de ter nascido livre” (FERREIRA, 2007, p. 271, 272). Podemos dizer que “o caminho trilhado pelo ex-escravo analfabeto alçado ao status de cidadão foi longo e árduo” (FERREIRA, 2007, p. 272). Segundo o próprio Gama, ele seria

[…] filho de uma africana livre, Luiza Mahin […] envolvida em revoltas negras como as inúmeras que agitam a Bahia dos anos 1830. Contrariamente, porém, ao que sonharam alguns a partir de uma interpretação fantasiosa do que escrevera Luiz Gama, atribuiu-se equivocadamente à mítica Luiza Mahin um papel de liderança jamais comprovado na Revolta dos Malês (Reis, 2003, p.303). Luiz Gama, no entanto, alude à adesão de seus pais a um outro levante baiano. Sua mãe teria se dirigido ao Rio de Janeiro, ali desaparecendo, após a “Revolução do Dr. Sabino” em 1837, movimento que proclama uma república provisória em repúdio ao poder monárquico central, a exemplo do que ocorria em outro ponto do país, como a Revolução Farroupilha. […] Luiz Gama, porém, jamais revelaria o nome do pai que o vende aos dez anos de idade como escravo, protagonizando o primeiro dramático episódio de sua existência (FERREIRA, 2007, p. 272).

Após ter sido vendido por seu pai, Gama, na condição de escravo, foi levado ao Rio de Janeiro e, posteriormente, “em 1840”, para São Paulo, onde é comprado por Antônio Pereira Cardoso, que seria proprietário de uma fazenda em Lorena/SP (FERREIRA, 2007, p. 273). No ano de 1847, Antônio Pereira Cardoso recebeu a visita de Antônio Rodrigues do Prado Júnior, que se tornou o responsável pelo letramento de Gama.

Conforme nos relata Ferreira (2007, p. 272), “em menos de doze anos, o ex-escravo entra para o mundo das letras, um mundo quase exclusivo de brancos […]”. Nesse contexto, “pela primeira vez na literatura brasileira, ouve-se uma voz negra” (FERREIRA, 2007, p. 272). Após

[…] provar o sucesso e a legitimação propiciadas pela publicação de seu livro, em meados dos anos 1860 Luiz Gama inicia suas atividades na imprensa paulistana onde desempenha um papel histórico. Ao lado do desenhista italiano Ângelo Agostini (1843-1910), ajuda a fundar os primeiros periódicos ilustrados de são Paulo, o Diabo coxo (1864-1865) e cabrião (1866-1867), publicações fortemente marcadas por posturas anticlericais e antimonárquicas, temas recorrentes nos escritos de Gama (FERREIRA, 2007, p. 272, 273).

Existem fortes indícios de que o que possibilitou Gama de tornar-se autodidata em Direito teria sido sua amizade com Furtado de Mendonça, que, além de ser chefe da polícia de São Paulo, seria, também, bibliotecário-chefe da Faculdade de Direito, além de Professor. Cita-se, também, o fato de Gama ter como amigo José Bonifácio, integrante do corpo docente da Faculdade de Direito (FERREIRA, 2007, p. 274).

De qualquer forma, após tornar-se autodidata em Direito, Gama passaria a exercer a profissão, visto que, durante tal período, isso seria possível mediante a concessão de uma licença especial para quem comprovasse competência em tal matéria. “A imprensa e os tribunais convertem-se em palcos privilegiados para os combates daquele homem animado […]” (FERREIRA, 2007, p. 273).

A atuação de Luiz Gama no exercício do Direito e sua determinação encontram respaldo no contexto paulistano, pois, “por volta de 1870, São Paulo é uma das principais províncias negreiras do país. A ação abolicionista de Luiz Gama e de seu grupo ali encontraria, pois, sua plena justificação” (FERREIRA, 2007, p. 273).

Em meados do século XIX, no Brasil, havia Faculdade de Direito, apenas, no Recife e em São Paulo. Obviamente, isso propiciou à capital paulista forte influência liberalista diante da chegada de “jovens de diversas regiões do país, filhos de abastadas famílias da oligarquia rural” […] e de “segmentos socioeconômicos que se diversificam ao longo do tempo” […] (FERREIRA, 2007, p. 273).

Ferreira (2007, p. 273) nos diz que, “ao compartilhar experiências […] passavam a ter uma visão global do Brasil, abandonando o prisma regional que entravava a consolidação da independência e de um real sentimento ou ideia de nação”. Esse contexto tornaria propícia a atuação de Gama, que, em certo sentido, destoaria do padrão social vigente à época.

O poder econômico e o status social relacionados à escravidão no Brasil foram tamanhos que a própria igreja pronunciou-se contra as aclamações referentes à abolição da escravatura. Na realidade, no século XVI, a escravidão já tinha sido corroborada pela igreja por parte dos padres angolanos (COMPARATO, 2012, p. 356).

Porém, a igreja não se restringiu, apenas, em apoiar a longa e cruel escravidão brasileira, pois, Comparato (2012, p. 356) nos diz que “no curso dos séculos seguintes, várias ordens religiosas passaram a possuir grandes fazendas, onde acumulavam milhares de escravos. Em algumas delas, instituíram-se criatórios de escravos”.

 É importante salientarmos que os “escravos eram também numerosos dentro dos próprios conventos de frades e freiras. Em meados do século XVIII, no Convento do Desterro da Ordem das Suplicantes, em Salvador, 75 religiosas eram servidas por 400 escravas” (COMPARATO, 2012, p. 356).

Dado contexto, é de admirar-se que, numa sociedade escravagista e corrupta, um ex-escravo atue como advogado por tanto tempo e com tanto êxito, mesmo quando se pronunciando contra recorrentes deturpações judiciais proferidas a favor de proprietários de terras e de escravos.

Comparato (2012, p. 355), abordando esse fato, nos traz a recordação o acontecido memorável, de quando Gama, “praticamente sozinho, logrou livrar do cativeiro ilegal mais de quinhentos negros — fato sem precedentes na história mundial da advocacia”.

Olhar para esse passado de práticas sociais questionáveis e não reconhecer o raio de luz empreendido por Luiz Gama seria o mesmo que deixar de reconhecer os próprios conceitos básicos atrelados à palavra liberdade, pois, pela liberdade de seus pares ele viveu e exerceu sua profissão.

 

COMPARATO, Fábio Konder. Luiz Gama, desprezador de nossas falsas elites. Estud. av. São Paulo, v. 26, n. 75, p. 355-358, ago. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142012000200024&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 02 de jul. de 2018.

FERREIRA, Ligia Fonseca. Luiz Gama: um leitor abolicionista de Renan. Estud. av. São Paulo, v. 21, n. 60, p. 271-288, agosto de 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142007000200021&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 30 de julho de 2018.

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