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A REVOLUÇÃO FARROUPILHA E O MASSACRE DE PORONGOS – LANCEIROS NEGROS: uma memória

A Revolução Farroupilha (1835-1845), ocasionada no Sul do Brasil, foi o conflito civil mais longo de toda nossa História.

As questões básicas dessa Revolução tornaram-se conhecidas no Brasil por integrarem livros didáticos nas suas propostas de educação. Porém, um aspecto importante desse conflito, que é a participação ativa do negro para a construção do estado rio-grandense e de sua memória, tem sido ignorada pela História tradicionalista e pouco divulgada fora desse estado (CARRION, 2008).

Por esse motivo, se faz necessária a divulgação e problematização desse conflito, e da participação irrefutável dos Lanceiros Negros para o processo de construção da História do Rio Grande do Sul, que, na época da Revolução Farroupilha, se chamava: Província de São Pedro do Rio Grande do Sul.

Segundo Carrion,

Uma das questões menos estudada e menos conhecida da Revolução Farroupilha é a contribuição dos negros nessa luta e o destacado papel que nela tiveram os célebres Lanceiros Negros. Tudo de acordo com a conhecida ‘invisibilidade’ a que costumam ser relegados os negros na história oficial do nosso país e do nosso estado. É preciso dizer que desde o seu início, a luta dos farroupilhas contou com importante participação de negros e mulatos. Assim, são os próprios imperiais quem informam — poucos dias após a deflagração da rebelião — que ‘A força dos revoltosos que se apresentaram próximo à Azenha e que depois entraram na Cidade de Porto Alegre, não excedia de 80 a 90 pessoas, índios, negros e mulatos, a maior parte armados de lanças’. (AHRGS-3, 1985, p.131). E, no dia em que começa a revolta, o Dr. Hillebrand, líder dos colonos alemães de São Leopoldo informa: ‘passo a comunicar aos meus patrícios alemães que um partido, pela maior parte composto de negros e índios, está ameaçando as autoridades desta Província’ (CARRION, 2008, p. 6, apud. BENTO, 1976, p. 172).

A Revolução Farroupilha, que inicialmente foi liderada por Bento Gonçalves, teve por marco zero a tomada da cidade de Porto Alegre em setembro de 1835 (CARRION, 2008). A partir desse momento, intensificou-se o arrebanhamento dos negros com o propósito de integrarem as linhas combatentes dos Farrapos e, esses,

em sua grande maioria, foram recrutados entre os negros campeiros e domadores das Serras dos Tapes e do Herval (Canguçu, Piratini, Caçapava, Encruzilhada, Arroio Grande), na Zona Sul do Estado. Inicialmente comandados pelo Tenente Coronel Joaquim Pedro Soares, mais tarde tiveram por chefe o Major Joaquim Teixeira Nunes (CARRION, 2008, p.8).

De maneira recorrente, mediante pagamento, os federalistas libertaram escravos os armando para comporem suas fileiras combatentes. Visto serem em sua maior parte pautados em ideias liberalistas, não consentiam na escravidão. Esse era um dos pontos de ampla contradição entre Farrapos e Imperialistas escravagistas (CARRION, 2008).

O grupo farroupilha foi se fortalecendo com a participação dos negros e, no dia “12 de Setembro de 1836, foi constituído o 1º Corpo de Cavalaria de Lanceiros Negros, com mais de 400 homens, um pouco antes da batalha de Seival [Bagé], onde jogou importante papel na vitória contra os imperiais” (CARRION, 2008, p. 7).

Esses seriam “a tropa de choque do exército farroupilha. Foi tão importante o seu papel que, em 31 de agosto de 1838, foi formado o 2º Corpo de Lanceiros Negros, com 426 combatentes” (CARRION, 2008, p.8). Carrion (2008, p.16) nos trás a atenção um importante comentário feito por “Júlio Chiavenato” quando esse diz que:

Era fácil recrutar escravos, pois eles até esperavam a chegada dos farrapos para entrar num exército que os ‘libertaria’. Lutar ao lado dos farroupilhas era uma oportunidade concreta de liberdade para os escravos. Não faltavam negros que fugiam dos seus senhores no Uruguai para engrossar as forças gaúchas (CARRION, 2008, p.16, apud. CHIAVENATO, 1988, p. 51).

Esse fato desagradava muito os imperialistas e, em novembro de 1838, informaram que haveria punição aos escravos que fossem capturados fazendo parte do grupo republicano e que estariam sujeitos a uma pena entre duzentas a mil chibatadas como punição (CARRION, 2008).

Essa postura imperialista fez com que os farrapos se pronunciassem a respeito desse decreto dizendo que “despreza aquele imoral governo toda a espécie de processo e formalidade judiciária para a qualificação daquele suposto crime” (CARRION, 2008, p.9), isso, se referindo ao tratamento que haveria de ser dado aos negros que fossem capturados fazendo parte do grupo farrapo.

A postura federalista, com relação à escravidão, fica evidente quando dizem que

foi em obediência às sagradas leis da humanidade, luzes deste século e aos verdadeiros interesses dos cidadãos de Estado, é que o Governo [da República Rio-Grandense] passou a libertar os cativos aptos para a profissão das armas, oficinas e colonização, a fim de acelerar, de pronto, a emancipação dessa parte infeliz do gênero humano. E, isso, com o grave sacrifício da Fazenda Pública, pois os que exigiram a indenização desses cativos, a receberam de pronto ou receberam documento para indenização oportuna. O Presidente da República para reivindicar os direitos inalienáveis da humanidade, não consentirá que o homem livre rio-grandense, de qualquer cor com que os acidentes da natureza o tenham distinguido, sofra impune e não vingado, o indigno, bárbaro, aviltante e afrontoso tratamento, que lhes prepara o infame Governo Imperial. Em represália à provocação decreta:

Artigo Único: Desde o momento em que houver notícia certa de ter sido açoitado um homem livre de cor a soldo da República, pelo Governo do Brasil, o General Comandante de Exército ou o comandante de qualquer Divisão tirará a sorte entre os oficiais imperiais, de qualquer patente, nossos prisioneiros e fará passar pelas armas aquele oficial que a sorte designar. Domingos José de Almeida. Ministro e Secretário de Estado de Negócios do Interior, Fazenda e Justiça. (CARRION, 2008, p.9-10, apud.O POVO, 1839, p. 274).

Carrion (2008, p.10) nos diz que “os farrapos não consideravam os negros que lutavam nas tropas republicanas como escravos, e sim como homens livres […]” e, caso algum desses fosse de fato açoitado pelos imperialistas, a situação seria corrigida diante da execução de algum oficial do império.

Torna-se importante mencionar também que, entre os farrapos, havia dois líderes negros de destaque: “[…] Domingos José de Almeida — Ministro do Tesouro da República de Piratini — e […] Mariano de Mattos — por duas vezes Ministro da Guerra e da Marinha e Presidente da República Farroupilha entre 13 de novembro de 1838 e 14 de março de 1841” (CARRION, 2008, p.12).

 Salienta-se ser “Mariano de Mattos, abolicionista convicto, quem apresentou na Assembléia [sic] Constituinte — em nome da maioria […]” um projeto de lei que visava por fim a escravidão no Rio Grande. Porém, uma pequena parte “capitaneada por Antônio Vicente da Fontoura, e secundada por Davi Canabarro e Onofre Pires — foi tão violenta […]” que impossibilitou a aprovação da mesma (CARRION, 2008, p.12) visto colocar em risco a união do partido.

Como em todo e qualquer partido, entre os republicanos, havia divergência de ideias. Embora, em sua maioria, fossem a favor do fim da escravidão humana, alguns demonstrariam estar dispostos a se envolver em situações questionáveis para a preservação e manutenção desta (CARRION, 2008).

Foram muitas idas e vindas relativas ao processo de paz entre republicanos e imperialistas e a causa dos Lanceiros Negros ganhou notoriedade nesse processo, pois o então “Ministro da Guerra José Clemente Pereira (1841-1842) preocupava-se com os problemas diplomáticos e militares resultantes de um grande número de ex-escravos armados […]” buscando “[…] asilo para continuar a guerra, a partir do Uruguai” (CARRION, 2008, p.18).

Segundo Carrion (2008, p.18), esse problema preocupava, também, os farrapos favoráveis a escravidão, que eram liderados

por David Canabarro e Antônio Vicente da Fontoura – que haviam assumido as principais funções civis e militares da República, afastando Bento Gonçalves, Domingos de Almeida e Antônio Souza Neto, e que agora negociavam a paz com Caxias. Por um lado, era impossível obter um mínimo de consenso para concertar a paz sem garantir a liberdade aos negros libertos, que há dez anos lutavam pela República Além disso, seria muito arriscado o retorno dos combatentes negros ao trabalho servil, o que poderia levar o fermento da rebelião para as senzalas. Por outro lado, para a ordem escravocrata reinante, também era perigoso manter livres um grande contingente de negros com experiência militar.

A partir desse momento, Luiz Alves de Lima e Silva, conhecido como Duque de Caxias, passou a evidenciar uma das suas faces que não é divulgada pela História tradicionalista, pois,

na madrugada do dia 14 de novembro de 1844, […] os Lanceiros Negros – previamente desarmado por Canabarro e separados do resto das tropas – foram atacados de surpresa e dizimados pelas tropas imperiais comandadas pelo Coronel Francisco Pedro de Abreu (Moringue), ao que tudo indica, através de um conluio entre David Canabarro e o Duque de Caxias, para livrarem-se dos negros em armas e forçar a assinatura da Paz de Ponche Verde (CARRION, 2008, p.19-18).

Segundo Carrion (2008, p.23), para “Alfredo Varela, o grande historiador da Revolução Farroupilha” David Canabarro foi, de fato, traidor. Pode-se dizer que a maior parte dos farroupilhas envolvidos “não queria a paz, que Canabarro se deixou derrotar em Porongos para fazer uma paz que lhe desse posição e especialmente fortuna, porque com posições não se importava muito, mas era ambicioso de dinheiro” (CARRION, 2008, p.23, apud. VARELA, 1933, p. 500) e Duque de Caxias o comprou.

Carrion (2008, p.24) afirma que Bento Gonçalves, profundamente indignado com Canabarro, faz menção a este numa carta enviada a determinado amigo chamado “Silvano”, dizendo que capitães perdem batalhas, “[…] e ninguém pode estar livre disto; mas dirigir uma massa e prepará-la para sofrer uma surpresa semelhante (…) é (…) covardia do homem que assim se conduz” (CARRION, 2008, p.24, apud. SILVA,1985, p. 256).

Referente aos demais negros que participaram da Revolução Farroupilha e não estavam entre os que foram emboscados na traição de David Canabarro, Carrion (2008, p.26) nos diz que “ocorreu novo revés das armas farroupilhas: Teixeira Nunes e os remanescentes dos seus Lanceiros Negros foram enviados por Canabarro para executar uma ação altamente temerária (sobre a qual, pelo alto risco, também pairam suspeitas) […]”.

Carrion (2008, p.30) afirma que “a enorme contribuição dos Lanceiros Negros — e dos negros em geral — à luta farroupilha […] não se limitou à sua participação na resistência armada, mas que também se expressou nas mais variadas atividades produtivas e administrativas”. Ele menciona também que,

[…] os fatos históricos nos indicam quão distante da realidade está a historiografia tradicional — laudatória dos ‘centauros (brancos) dos pampas’ — que, ao mesmo tempo que ‘esquece’ a decisiva participação dos negros na luta farroupilha, idealiza o espírito ‘libertário’ e ‘emancipador’ dos grandes fazendeiros que hegemonizaram a luta pela Federação e pela República na então Província de São Pedro, ignorando suas contradições frente à questão servil e negando episódios como a traição de Porongos (CARRION, 2008, p.30).

Concordamos com Carrion (2008, p.5) quando esse diz que “uma cortina de silêncio foi baixada sobre esse degradante episódio da guerra dos farrapos”. Sendo historiador e Deputado, Raul Carrion protocolou,

[…] na Assembléia Legislativa do RS, um projeto em homenagem aos Lanceiros Negros. A proposta foi aprovada por unanimidade e transformou-se na Lei 12.856/2007. Com sua aprovação, o Sítio de Porongos, localizado no Município de Pinheiro Machado, foi declarado como Patrimônio Histórico e Cultural do Rio Grande do Sul (CARRION, 2008, p.5).

Essa História mostra ser uma importante memória do árduo processo de sociabilização enfrentado pelo negro no Brasil.

 

Referências:

 

CARRION, R. Os lanceiros negros na Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2008. Disponível em: <http://www.raulcarrion.com.br/publicacoes/lanceiros.pdf>. Acesso em: 21 Mar. 2019.

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